
"Valerá a pena? Remorsos, sim, é verdade, às vezes tenho remorsos. Vejo-me em sonhos como um pássaro negro, crepuscular, alimentando-se nas sombras, nos desperdícios, nos destroços, das vidas alheias. Mas, afinal, o que se leva da vida, senão remorsos? Remorsos do que podia ter sido e não foi e do que se perdeu depois de ter sido. Remorsos do que devia ter sido dito e feito e não foi a tempo ou do que foi demasiadamente dito e feito. Remorsos destes eternos desencontros, desta sensação de que nada existe no seu tempo certo, de chegar sempre tarde ou partir sempre cedo demais. Por que será que a seguir à noite vem sempre a manhã e de manhã pesa sempre nos olhos e na alma o que se fez e desfez de noite - um corpo húmido deixado num lençol de seda e o ladrão furtivo desse corpo abandonando o quarto que não é seu, em direcção ao vazio de tudo o que lhe pertence, inutilmente? "
Miguel Sousa Tavares in Não te deixarei morrer David Crockett